Conceitos básicos da acústica – PARTE II
Som é um dos sentidos que por vezes são desprezados frente à visão e ao tato. Pouco do som é realmente conhecido por muitos em nosso país e por esse motivo muitos casos de descaso e de ignorância acontecem e causam problemas de poluição sonora e outros ligados à saúde humana. No artigo anterior, apresentamos a definição de som, as características das ondas sonoras (grandezas envolvidas e formas de propagação) e falamos sobre a representação numérica da percepção do som. Trataremos dos fundamentos acústicos básicos neste artigo e, em seguida, propomos uma reflexão sobre a importância do estudo da acústica em espaços espaços projetados. Antes de tudo, vamos falar sobre uma das principais perguntas capazes de definir os objetivos acústicos desejados para cada projeto.
Afinal, qual a diferença entre som e ruído?
Embora as ideias por trás de cada conceito variem, as leis que regem o som e o ruído são as mesmas, e em geral é uma questão de perspectiva quanto a como encarar o fenômeno físico.
A definição do ruído é passível de interpretações diversas. O ruído pode ser considerado como qualquer som dissonante, discordante ou anárquico [1]. Outros pesquisadores [2] acrescentam a presença de componentes psicológicos em seu discernimento. Generalizando, pode-se considerar um som como ruído acústico quando este interfere negativamente na compreensão da informação, ou quando este som não traz informação relevante ou útil em termos de comunicação. Exemplos de ruído podem ser: o som produzido pelo motor de um automóvel ou de um avião, uma televisão ligada durante uma reunião familiar, ou o gotejar de uma bica no meio da noite.
Do ponto de vista da física, o ruído pode ser considerado um som resultante da superposição desarmônica de sons provenientes de várias fontes, apresentando geralmente um espectro de frequências de difícil interpretação. Geralmente, o espectro do ruído é de banda larga de frequências (uma combinação de diversas frequências), compacto e uniforme, sendo comum aparecer uma maior predominância de uma faixa de frequências específica (graves, médias ou agudas) [3].
Figura 1: Espectro de um ruído rosa (esq.) e ruído branco (dir.)
Fonte: Wikipedia
O ruído rosa é bem conhecido por ser utilizado para testar equipamentos de áudio e ele apresenta igual amplitude em bandas de oitava, já o ruído branco apresenta uma densidade espectral de potência constante em toda a faixa audível. Tendo em vista a quantidade de frequências no espectro dos ruídos, recorre-se à padronização de alguns ruídos, para utilização em testes e calibração de equipamentos eletroacústicos. O ruído aleatório é por definição o ruído cuja densidade espectral de energia é próxima da distribuição gaussiana.
O ruído branco é constante para todas as frequências audíveis, ou seja, um sinal com igual intensidade em diferentes frequências, conforme a Figura 3. Compara-se o som resultante do ruído branco ao de uma televisão “fora do ar”. O nome ruído branco é uma analogia com o espectro eletromagnético na faixa de luz branca, que possui um espectro largo e constante, contendo todas as frequências do espectro visível [3].
Figura 3: Ruído Branco
Fonte: [3]
O ruído rosa ou ruído 1/f é, por definição, o ruído cuja densidade espectral de potência é inversamente proporcional à frequência do sinal. Assim como o ruído branco, o nome ruído rosa vem, igualmente, de uma analogia com o espectro luminoso: a luz vermelha possui a mais baixa frequência do espectro.
Figura 4: Ruído Rosa
Fonte: [3]
O incômodo ao ruído não apenas interfere na conversação e inteligibilidade da fala, como também, apresenta efeitos negativos comprovados na saúde humana. Tais efeitos são considerados auditivos, associados à perda auditiva temporária ou permanente, ou extra auditivos, associados aos prejuízos físicos e mentais. Estes, em virtude das reações fisiológicas associadas à exposição, podem estar relacionados a: doenças cardiovasculares, efeitos psicossociais generalizados, redução do desempenho e da atenção, além de aumento do comportamento agressivo. As leis e normas que tratam do ruído amparam-se, justamente, na incomodidade ao som e na garantia da saúde, para definir parâmetros de tolerância. Um ruído, portanto, pode ser incômodo e/ou apresentar níveis intoleráveis, podendo causar a perda auditiva.
Tendo em vista a subjetividade inerente ao ruído (sons que não são nocivos diretamente ao aparelho auditivo) o incômodo ao ruído é dependente de aspectos psicoacústicos do ser humano. A psicoacústica é o campo responsável pelo estudo de percepção auditiva em relação às características físicas do som. Esta área de conhecimento baseia-se no estudo fisiológico da audição, tendo por objeto de pesquisa o entendimento do processo auditivo, isto é, a forma como os sons chegam ao ouvido e são processados pelo cérebro dos indivíduos. A psicoacústica ocupa-se, portanto, das relações entre as características do som e a sensação auditiva que ele provoca.
Características da audição humana: a fisiologia do sistema auditivo
Os estímulos externos são captados pelo ouvido humano, o qual transforma as vibrações em impulsos sonoros para o cérebro. Em média, o canal auditivo humano possui 25 mm de comprimento, 7 mm de diâmetro e cerca de 1 cm3 de volume, podendo ser dividido em três partes principais: ouvido externo, ouvido médio e ouvido interno. O ouvido externo funciona como um tubo ressonador, sendo composto pelo pavilhão auditivo (orelha), que permite a captação do som externo e a sua condução pelo canal auditivo, até o ouvido interno. Ao final do canal auditivo, entre o ouvido externo e o médio, tem-se o tímpano (membrana timpânica), uma membrana que veda o canal auditivo. As ondas sonoras difratadas no interior do canal auditivo têm por consequência o aumento do nível de pressão sonora no tímpano. A ressonância mais baixa do canal auditivo fica em torno de 3 kHz, de forma que o nível de pressão sonora no tímpano é aproximadamente 10 dB maior do que no ouvido externo (entrada do canal auditivo). Outros fatores alteram a equalização e mudam a amplitude do som visto que a audição humana é particularmente mais sensível aos sons na faixa de frequências entre 2 a 6 kHz. Por outro lado, a sensibilidade cai significativamente com as baixas frequências, devido aos grandes comprimentos de onda em relação ao comprimento do canal auditivo e sensibilidade dos órgãos aos sons que exigem um maior deslocamento de partícula e consequente deflexão do tímpano.
Em resumo, ao atingirem os ouvidos externos, as ondas sonoras percorrem o canal auditivo até o tímpano. As variações longitudinais na pressão do ar da onda de som se propagam para o tímpano, causando vibração. O movimento do tímpano, por sua vez, faz vibrar o conjunto de ossículos: o martelo, a bigorna e o estribo, convertendo mecanicamente as vibrações do tímpano em ondas de pressão que são amplificadas.
Seguidamente aos ouvidos externo e o médio, temos o ouvido interno (também chamado labirinto). As partes principais do ouvido interno são o vestíbulo, os canais semicirculares e a cóclea. Os canais semicirculares, embora não tenham função no processo de ouvir, nos fornecem o senso de equilíbrio. A cóclea é um sistema sensorial capaz de converter a energia vibratória (som) em sinais elétricos para o cérebro, para a detecção e interpretação dos sons. O processo fundamental da audição é a transformação do som em impulsos elétricos ao cérebro.
Figura 5: Anatomia da orelha humana
Características da audição humana: a sensibilidade do sistema auditivo
Como mencionado, a psicoacústica ocupa-se das relações entre as características do som e a sensação auditiva que ele provoca, utilizando-se das correlações entre as características físicas do som e as reações subjetivas ocasionadas por ele. Existem algumas métricas associadas à área da psicoacústica tem por finalidade mensurar estas correlações existentes.
Curvas de mesma audibilidade (loudness)
Um som é considerado audível quando sua amplitude está acima do limiar da audição, que é o ponto de transição entre a audibilidade e inaudibilidade. Quando a amplitude sonora excede este limite, o som é processado e percebido. O ouvido humano possui uma sensibilidade diferenciada para cada faixa de frequência do espectro sonoro, realizando uma filtragem do som conforme o nível de pressão sonora. As frequências baixas (graves) são menos perceptíveis que as altas frequências (agudos) para níveis de pressão sonora baixos. Quando os níveis são altos, essa diferença de sensibilidade é pouco significativa. Esta relação pode ser vista na Figura 6.
Figura 6: Curvas de mesma audibilidade
As curvas de mesma audibilidade, também chamadas curvas isofônicas, foram obtidas determinando os valores de níveis de pressão sonora, em função da frequência para sons que soam com igual intensidade. Essas curvas são denominadas curvas de Fletcher e Munson e, segundo elas, um som com nível de pressão sonora igual a 50 dB em 1 kHz, por exemplo, tem o mesmo nível de audibilidade de um som de 70 dB em 80 Hz. É comum a utilização do nome de FON à unidade de nível de audibilidade. As curvas de audibilidade são muito importantes no estudo de acústica. Nos aparelhos de som, por exemplo, é possível utilizar a tecla “loudness”, permitindo um aumento proporcional dos sons graves e agudos com relação às curvas, de forma que todas as frequências sejam igualmente ouvidas. Nos medidores de nível de pressão sonora, as medições são feitas levando-se em consideração a sensibilidade do ouvido: o aparelho mede o nível de pressão sonora da mesma forma que o ouvido humano percebe o som, equalizando de acordo com as curvas de mesma audibilidade. Este aspecto pode ser mais bem explicado a partir das curvas de ponderação.
Curvas de ponderação A, B, C e D
Os efeitos da orelha humana são considerados nos instrumentos de medição (medidores de nível de pressão sonora), a partir de três curvas de ponderação: A, B e C. Apesar de não serem considerados parâmetros psicoacústicos, as curvas de ponderação são formas geralmente adotadas para a representação de ruídos.
Como a percepção auditiva é função do nível do som, são adotadas curvas de compensação para medição do ruído, conforme o nível de pressão sonora. A curva de ponderação “A” tem por característica a atenuação dos sons graves, resultando em um maior ganho para a faixa de frequências de 2 a 5 kHz, voltando a atenuar sons acima desta faixa. Essa é a curva de sensibilidade do aparelho auditivo. Isto significa que o valor ponderado A de uma determinada fonte sonora é uma aproximação à maneira como o ouvido humano percebe o ruído.
A curva de ponderação “C” é linear e geralmente utilizada para avaliar a presença de sons de baixas frequências, tendo sido incorporada aos medidores havendo necessidade de medição de todo o som do ambiente. Já a curva D possui ênfase na faixa de frequência de 1kHz a 10kHz, sendo normalmente utilizada para medição de ruído de aviões.
Figura 7: Curvas de ponderação
Além das curvas de mesma audibilidade e curvas de ponderação, existem outros parâmetros que podem ser utilizados para definição dos aspectos psicoacústicos, mas que não entraremos em detalhes neste artigo. A seguir, alguns deles: Fluctuation Strenght (FS), Roughness (R), Sharpness (S), Annoyance (A), Pleasantness (P), Tonality (T) e Kurtosis (K).
Como relacionamos o estudo da acústica com os espaços projetados?
Esta pergunta é a base na qual se sustentam todos os artigos que publicamos no Portal.
Uma vez abordados os conceitos que consideramos fundamentais para o estudo da acústica, como relacioná-los com os espaços que habitamos e frequentamos? A resposta para esta pergunta nos remete ao conceito de conforto.
A partir do conceito de conforto ambiental e, no nosso caso de estudo, conforto acústico, são definidos os parâmetros e critérios baseados nas exigências humanas e funcionais. O conceito de conforto ambiental está associado à noção básica de se proporcionar aos ambientes habitados as condições necessárias de habitabilidade, respeitando aspectos ambientais e sociais. O conforto ambiental, portanto, compreende a análise das condições térmicas, acústicas, lumínicas e energéticas e os fenômenos físicos a elas associados, sendo eles condicionantes da forma e da organização do espaço construído.
Do ponto de vista acústico, ambientes “acusticamente confortáveis” proporcionam boa inteligibilidade da fala ou clareza musical e controle de sons indesejáveis, criando uma sensação agradável aos seus usuários. Como dito anteriormente, as leis e normas que tratam do ruído amparam-se, justamente, na incomodidade ao som e na garantia da saúde, para definir parâmetros de tolerância. Estas definições giram em torno do conceito de conforto.
Já mencionada em outros artigos do Portal, a NBR 10152 (Acústica – Níveis de pressão sonora em ambientes internos a edificações), por exemplo, é a norma brasileira que estabelece níveis de pressão sonora aceitáveis para ambientes internos (no caso da propagação sonora por via aérea), tendo sido justamente elaborada com base na comprovação de que a ausência de conforto acústico é fator condicionante para a saúde humana. Outras normas têm por objetivo proporcionar a qualidade acústica e o conforto dos usuários de edificações, como a NBR 10151 e NBR15575, amplamente mencionadas no Portal.
A ideia do conforto acústico engloba tanto a qualidade sonora como o controle de sons indesejáveis em um ambiente, nos remetendo novamente à importância do entendimento da diferença entre som e ruído.
Existem os ambientes onde a reprodução da música ou da voz é importante, tais como salas de concerto, teatros, estúdios e auditórios. Em ambientes com estas finalidades de uso, o som é bem-vindo: deseja-se que som chegue até o receptor, visando a transmissão de uma informação relevante. Os objetivos acústicos, neste caso, são obtidos a partir de uma série de parâmetros para qualificação sonora da sala. Estes parâmetros foram abordados no artigo “Qualificação acústica de salas”, publicado no blog do Portal Acústica dia 4 de fevereiro de 2019. Leia o artigo na íntegra clicando aqui: X. O desempenho acústico de ambientes como estes baseia-se tanto em características geométricas, como no equilíbrio adequado das propriedades de absorção, reflexão e difração, a partir dos materiais e dispositivos acústicos instalados.
Por outro lado, existem os ambientes submetidos à exposição sonora elevada, podendo causar perda auditiva ou perturbação no trabalho ou descanso de seus usuários. Da mesma forma, existem ambientes submetidos a fontes sonoras indesejáveis, cujos níveis de pressão sonora podem não ser intoleráveis, mas que não trazem informações relevantes aos seus receptores, provocando incômodo. O objetivo acústico, nestes casos, é amparado em legislações e critérios normativos específicos, de forma a controlar os níveis de pressão sonora considerados “indesejáveis” ou elevados, a partir de soluções de isolamento e condicionamento acústico. A legislação ambiental, bem como a normativa que trata do desempenho acústico de edificações, têm por objetivo a definição de limites aceitáveis para sons que, de forma unânime (e, em muitos casos, com prejuízos comprovados à saúde humana), são considerados “indesejáveis” ao seu receptor: o ruído de uma rodovia movimentada (capaz de tirar o sono de qualquer pessoa), o arrastar de móveis do vizinho de cima, o ruído das atividades industriais em uma vizinhança residencial, dentre outros.
Você deve ter notado: no primeiro caso nos referimos ao som e no outro ao ruído. Ao pensarmos no desempenho e na qualidade acústica de ambientes, o entendimento da diferença entre som e ruído é fundamental para definição dos objetivos acústicos desejados.
Ficou curioso para conhecer melhor os fundamentos do estudo da acústica ou tem dúvidas sobre algum assunto específico, citado ou não, neste artigo? Deixe seu comentário!
Referências
[1] CHADWICK, D. L. Music and hearing. Proceedings of the Royal Society of Medicine, v. 66, p. 1078 – 1082, nov. 1973.
[2] STANFELD, S. A.; SHARP, D.; GALLACHER, J.; BABISH, W. Road traffic noise, noise sensitivity and psychological disorder. Psychol Med, n. 23, p. 977 – 85, 1993.
[3] FERNANDES, J. C. Acústica e Ruídos. Faculdade de Engenharia – Unesp – Bauru Depto de Engenharia Mecânica Laboratório de Acústica e Vibrações, 2002. Disponível em: https://www.academia.edu/34985209/Ac%C3%BAstica_e_Ru%C3%ADdos
Prof, bom dia.
Ao analisar o gráfico do Ruído Rosa, percebi que ele diminui a amplitude no final do espectro. Como usamos ele no alinhamento do som na igreja, essa redução da amplitude não poderia estar afetando a gráfico de RTA nos induzindo erroneamente a reforçar essas frequências mais agudas? Não seria melhor usar o gráfico de Ruido Branco, cuja amplitude é constante em todo o espectro?
Abraços.
Iriel
Prezado Iriel, o ruído rosa realmente vai decaindo 3 dB/oitava, mas ele é um sinal que estatisticamente é similar ao som de uma banda tocando. Portanto, tem mais energia em baixas frequências mesmo. Mas esse é o sinal utilizado em áudio para se avaliar sistemas de som. O ruído branco teria muita energia em alta frequência, correndo o risco de você queimar as caixas de som ao fazer um alinhamento usando ele.
Obrigado pela pergunta.
Abraços!